A poesia sincrética
de Augusto dos Anjos:

O
poeta paraibano Augusto dos Anjos, nascido em Engenho do Pau d’Arco, PB, 20 de
abril de 1884, representa caso único na Literatura brasileira pelo sincretismo
de seus poemas, causando grande estranhamento quando de sua publicação. De vida
pessoal atribulada, formado em Direito em Recife, professor na Paraíba, no Rio
de Janeiro e em Minas Gerais, em Leopoldina, onde morreu, a 12 de novembro de
1914 sem o reconhecimento do público, o que veio mais tarde: Eu é um dos livros de poesia mais
editados do Brasil.
Augusto do Anjos
publicou um único livro Eu, em 1912,
mas após sua morte o crítico e amigo Órris Soares reuniu os poemas avulsos e
deu à obra o titulo definitivo Eu e
outras poesias. O livro compõe-se em sua maior parte de sonetos ao lado de
poemas longos, reflexivos, como As Cismas do Destino, e sua marca principal é o
sincretismo, ou seja, não há uma abordagem única, mas uma mistura de
tendências. Augusto dos Anjos prende-se às tendências do século XIX, seguindo o
modelo tradicional do soneto, o rebuscamento da linguagem, características
parnasianas, o cientificismo do Naturalismo, o pessimismo decadentista, típico
do Simbolismo, influência da filosofia de Schopenhauer, que pregava o
aniquilamento da vontade própria como saída para o Eu. Por outro lado, inova
por introduzir o mau gosto, o apoético, o anti-lirismo, causando a sensação de
desconforto, de estranhamento na leitura de seus poemas, este aspecto evidencia
o Expressionismo, vanguarda modernista de origem alemã, estudada no Modernismo.
A originalidade de sua poesia valeu-lhe críticas negativas na época, devido ao
gosto parnasiano do público da Belle Époque brasileira, que admirava Olavo
Bilac.
- TEXTOS:
Monólogo de uma sombra
“Sou
uma Sombra! Venho de outras eras,
Do
cosmopolitismo das moneras...
Pólipo
de recônditas reentrâncias,
Larva
de caos telúrico, procedo
Da
escuridão do cósmico segredo,
Da
substância de todas as substâncias!
A
simbiose das coisas me equilibra.
Em
minha ignota mônada, ampla, vibra
A
alma dos movimentos rotatórios...
E
é de mim que decorrem, simultâneas,
A
saúde das forças subterrâneas
E
a morbidez dos seres ilusórios!
(...)
Era
a elegia panteísta do Universo,
Na
produção do sangue humano imenso,
Prostituído
talvez, em suas bases...
Era
a canção da Natureza exausta,
Chorando
e rindo na ironia infausta
Da
incoerência infernal daquelas frases.
E
o turbilhão de tais fonemas acres
Trovejando
grandíloquos massacres,
Há-de
ferir-me as auditivas portas,
até
que minha efêmera cabeça,
Reverta
à quietação da trava espessa
E
à palidez das fotosferas mortas!
Agonia
de um filósofo
Consulto
o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
Rig-Veda.
E, ante obras tais, me não consolo...
O
Inconsciente me assombra e eu nele rolo
Com
a eólica fúria do harmatã inquieto!
Assisto
agora à morte de um inseto!...
Ah!todos
os fenômenos do solo
Parecem
realizar de polo a polo
O
ideal do Anaximandro de Mileto!
No
hierático areópago heterogêneo
Das
ideias, percorro como um gênio
Desde
a alma de Haeckel à alma cenobial!...
Rasgo
dos mundos o velário espesso;
E
em tudo igual a Goethe, reconheço
O
império da substância universal!
O
Morcego
Meia-noite.
Ao meu quarto me recolho.
Meu
Deus!E este morcego!E, agora, vede:
Na
bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me
a goela ígneo e escaldante molho.
“Vou
mandar levantar outra parede...”
--
Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E
olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente
sobre a minha rede!
Pego
de um pau. Esforços faço. Chego
A
tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que
ventre produziu tão feio parto?!
A
Consciência Humana é este morcego!
Por
mais que a gente faça, à noite ele entra
Imperceptivelmente
em nosso quarto!
A
Ideia
De
onde ela vem?!De que matéria bruta
Vem
essa luz que sobre as nebulosas
Cai
de incógnitas criptas misteriosas
Como
as estalactites duma gruta?!
Vem
da psicogenética e alta luta
Do
feixe de moléculas nervosas,
Que,
em desintegrações maravilhosas,
Delibera,
e depois, quer e executa!
Vem
do encéfalo absconso que a constringe,
Chega
em seguida às cordas da laringe,
Tísica,
tênue, mínima, raquítica...
Quebra
a força centrípeta que a amarra,
Mas,
de repente, e quase morta, esbarra
No
molambo da língua paralítica!
Psicologia
de um vencido
Eu,
filho do carbono e do amoníaco,
Monstro
de escuridão e rutilância,
Sofro,
desde a epigênese da infância,
A
influência má dos signos do zodíaco.
Produndissimamente
hipocondríaco,
Este
ambiente me causa repugnância...
Sobe-me
à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que
se escapa da boca de um cardíaco.
Já
o verme -- este operário das ruínas --
Que
o sangue podre das carnificinas
Come,
e à vida em geral declara guerra,
Anda
a espreitar meus olhos para roê-los,
E
há de deixar-me apenas os cabelos,
Na
frialdade inorgânica da terra!
O
Deus-Verme
Fator
universal do transformismo.
Filho
da teleológica matéria,
Na
superabundância ou na miséria,
Verme
-- é o seu nome obscuro de batismo.
Jamais
emprega o acérrimo exorcismo
Em
sua diária ocupação funérea,
E
vive em contubérnio com a bactéria,
Livre
das roupas do antropomorfismo.
Almoça
a podridão das drupas agras,
Janta
hidrópicos, rói vísceras magras
E
dos defuntos novos incha a mão..
.
Ah!Para
ele é que a carne podre fica,
E
no inventário da matéria rica
Cabe
aos seus filhos a maior porção!
Versos
íntimos
Vês!Ninguém
assistiu ao formidável
Enterro
de tua última quimera.
Somente
a Ingratidão -- esta pantera --
Foi
tua companheira inseparável!
Acostuma-te
à lama que te espera!
O
Homem, que, nesta terra miserável,
Mora,
entre feras, sente inevitável
Necessidade
de também ser fera.
Toma
um fósforo. Acende teu cigarro!
o
beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A
mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se
a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja
essa mão vil que te afaga,
Escarra
nessa boca que te beija!
O
meu nirvana
No
alheamento da obscura forma humana,
De
que, pensando, me desencarcero,
Foi
que eu, num grito de emoção, sincero
Encontrei,
afinal, o meu Nirvana!
Nessa
manumissão schopenhauereana,
Onde
a Vida do humano aspecto fero
Se
desarraiga, eu, feito força, impero
Na
imanência da Ideia Soberana!
Destruída
a sensação que oriunda fora
Do
tato -- ínfima antena aferidora
Destas
tegumentárias mãos plebeias –
Gozo
o prazer, que os anos não carcomem,
De
haver trocado a minha forma de homem
Pela
imortalidade das Ideias!
Budismo
moderno
Tome,
Dr., esta tesoura, e...corte
Minha
singularíssima pessoa.
Que
importa a mim que a bicharia roa
Todo
o meu coração, depois da morte?!
Ah!Um
urubu pousou na minha sorte!
Também,
das diatomáceas da lagoa
A
criptógama cápsula se esbroa
Ao
contato de bronca destra forte!
Dissolva-se,
portanto, minha vida
Igualmente
a uma célula caída
Na
aberração de um óvulo infecundo;
Mas
o agregado abstrato das saudades
Fique
batendo nas perpétuas grades
Do
último verso que eu fizer no mundo!
As
cismas do destino
I
Recife,
Ponte Buarque de Macedo.
Eu,
indo em direção à casa do Agra,
Assombrado
com a minha sombra magra,
Pensava
no Destino, e tinha medo!
Na
austera abóbada alta o fósforo alvo
Das
estrelas luzia... O calçamento
Sáxeo,
de asfalto rijo, atro e vidrento,
Copiava
a polidez de um crânio alvo.
Lembro-me
bem. A ponte era comprida,
E
a minha sombra enorme enchia a ponte,
Como
uma pele de rinoceronte
Estendida
por toda a minha vida!
A
noite fecundava o ovo dos vícios
Animais.
Do carvão da treva imensa
Caía
um ar danado de doença
Sobre
a cara geral dos edifícios!
(...)
O
mundo resignava-se invertido
Nas
forças principais do seu trabalho...
A
gravidade era um princípio falho,
A
análise espectral tinha mentido!
O
Estado, a Associação, os Municípios
Eram
mortos. De todo aquele mundo
Restava
um mecanismo moribundo
E
uma teleologia sem princípios.
Eu
queria correr, ir para o inferno,
Para
que, da psique no oculto jogo,
Morressem
sufocadas pelo fogo
Todas
as impressões do mundo externo!
Mas
a Terra negava-me o equilíbrio...
Na
Natureza, uma mulher de luto
Cantava,
espiando as árvores sem fruto.
A
canção prostituta do ludíbrio.
A
meretri
A
rua dos destinos desgraçados
Faz
medo. O Vício estruge. Ouvem-se os brados
Da
danação carnal... Lúbrica, à lua,
Na
sodomia das mais negras bodas
Desarticula-se,
em coreias doudas,
Uma
mulher completamente nua
É
a meretriz que, de cabelos ruivos,
Bramando,
ébria e lasciva, hórridos uivos
Na
mesma esteira pública, recebe,
Entre
farraparias e esplendores,
O
eretismo das classes superiores
E
o orgasmo bastardíssimo da plebe!
(...)
Enroscou-se-lhe
aos abraços com tal gosto,
Mordeu-lhe
a boca e o rosto...
.................................................................................
.................................................................................
.................................................................................
.................................................................................
Ser
meretriz depois do túmulo!A alma
Roubada
a hirta quietude da urbe calma
onde
se extinguem todos os escolhos:
E,
condenada, ao trágico ditame,
Oferecer-se
à bicharia infame
Com
a terra do sepulcro a encher-lhe os olhos!
Sentir
a língua aluir-se-lhe na boca
E
com a cabeça sem cabelos, oca...
.................................................................................
Na
horrorosa avulsão da forma nívea
Dizer
ainda palavras de lascívia
.................................................................................
Estrofes Sentidas
Transponho
assim toda a sombria escarpa
Sinistro
como quem medita um crime...
E
quando a Dor me dói, tanjo minha harpa
E
a harpa saudosa a minha Dor exprime
Estes
versos de amor que agora findo
Foram
sentidos na solidão de uma horta,
À
sombra dum verdoengo tamarindo
Que
representa a minha infância morta!
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