Escrever é agir sobre o mundo, construindo e desconstruindo a vida, assumindo a autoria de sua história. Instagram:@palavraperfeita Contato: (34) 9 9149 2401
quinta-feira, 30 de março de 2017
CURSOS de Redação, Língua portuguesa e Interpretação de textos para concursos
{Um encontro semanal
de 3 horas}
Qual a finalidade dos cursos?
VESTIBULAR - ENEM - CONCURSOS PÚBLICOS - PROFISSIONAIS
DE TODAS AS ÁREAS – DESENVOLVER A CULTURA GERAL
Horários disponíveis:
·
Terças ou Quartas feira - tarde,
das 15h às 18
·
Terças ou Quartas feira – noite
das 19h às 22hs
Início:18 de abril de 2017
Término: 20 de junho de 2017
Curso: Interpretação de textos e solução de questões – Para
concursos
·
Terças ou quintas feira – manhã -
das 8:30min às 11h300min
·
Terças ou quintas feira – das 19hs às 22hs
*OBSERVAÇÕES:
O aluno que faltar à aula
poderá recuperá-la em qualquer outra turma.
As inscrições se encerram à
medida que se esgotam as vagas de cada turma.
Os alunos com frequência
mínima de 85% das aulas receberão certificado de conclusão, válido para
seu currículo.
A primeira parcela deverá ser
paga no ato da inscrição.
A matrícula deverá ser
efetuada antes do início do curso
Informe-se sobre valores pelos
telefones: (34) 3086 9696 ou 9 9149 2401 (whatsap).
Endereço: Avenida João
Pinheiro, 1370 – em frente à CEMIG
Há descontos especiais para
pagamento à vista.
·
Você aprenderá todas as técnicas de
interpretação de textos usadas no vestibular, no Enem e nos concursos públicos.
·
Receberá materiais especiais contendo os
recursos básicos que se utilizam nesse tipo de prova.
·
O curso trabalha a teoria e farta exercitação
prática.
·
Ao longo das aulas, serão praticados,
gradualmente, testes inéditos que o ajudarão a resolver vários tipos de
questões dos vestibulares e dos concursos públicos, envolvendo, inclusive,
proposições mistas (gramática e texto).
Os exercícios serão resolvidos
em sala de aula e as questões corrigidas no mesmo dia, pois o objetivo é
exercitar o raciocínio e constatar se a eventual dificuldade envolve falta de
conhecimento de causa acerca do assunto cobrado ou interpretação equivocada
quanto à proposta da questão.
quarta-feira, 22 de março de 2017
Terra Sonâmbula - Mia Couto Análise literária/ Vestibular UFU 2017
Mia Couto, em seu livro Terra Sonâmbula, mistura realidade
e fantasia de forma mágica, criando um entrelaçamento entre a tradição e o
moderno. Em Terra Sonâmbula, a oralidade perpetua a tradição que faz nascer o
futuro sonhado. Na busca por sua identidade o personagem Muidinga vai
adentrando no conhecimento ancestral e unindo a tradição à cultura moderna,
através de oralidade.
Uma história marcada por guerras e sofrimentos é o que se
percebe no imaginário moçambicano. Em 1975, após dez anos de guerra, Moçambique
conseguiu sua independência, através de um acordo assinado pela Frente de
Libertação de Moçambique (FRELIMO) e Portugal. No entanto, a guerra civil
permaneceu até 1992, quando foi assinado o Acordo Geral de Paz, em Roma a 4 de
outubro, pelo Presidente da República, Joaquim Chissano, e pelo Presidente da
RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana). Enfim, uma história entremeada por
lutas, e que serve como pano de fundo no romance Terra Sonâmbula (1993), de Mia
Couto.
Antônio Emilio Leite Couto, Mia Couto, nasceu na Cidade da
Beira, província de Sofala, Moçambique, a 5 de julho de 1955. É formado em
Biologia e trabalhou como jornalista. Filho de poeta, Mia Couto nunca abandonou
a poesia, pois suas narrativas unem a poesia e a prosa. É um autor engajado nas
mudanças de seu país, fez parte da FRELIMO. Autor de mais de 15 livros, sendo
que só o primeiro foi de poemas, Raiz de orvalho (1983) ganhou vários prêmios
com Terra Sonâmbula (1993), entre eles o de um dos 12 melhores livros de África
do século XX.
Em Terra Sonâmbula (1993), vemos um mundo de sonhos que se
mistura a uma realidade caótica, de guerras e devastação. Seus personagens
caminham entre a certeza e a dúvida, entre o onírico e a realidade. Sentem-se
perdidos e confusos denotando uma situação de abandono, que é a forma como se
encontra o país. É nesse espaço limítrofe entre a realidade e a imaginação que
vivem os personagens de Terra Sonâmbula (1993).
Tuahir e Muidinga são os primeiros a serem apresentados
como viajantes nesse périplo de aventuras e sonhos, num país destroçado pela
guerra. Muidinga, um adolescente e Tuahir um ancião. Na verdade, Muidinga está
em busca de seus pais, pois fora salvo da morte por Tuahir e não se recordava
de sua infância. Durante a narrativa descobre-se que Tuahir havia salvo
Muidinga de ser enterrado vivo, porque havia ingerido um tipo de mandioca que é
venenosa e ficara como morto. Nesse sentido, observa-se que o adolescente
empreende uma viagem iniciática, conduzido pelo mais velho, Tuahir, pois nos
ritos de iniciação, segundo Van Gennep, o noviço é separado da mãe e, durante o
ritual, seu corpo é enfraquecido até a perda da memória, sendo então
‘ressuscitado’ para iniciar uma nova vida na fase adulta, Muidinga é
considerado morto por sua tribo e depois ‘ressuscitado’ por Tuahir que lhe
inicia nos ensinamentos da vida adulta. É interessante observar que a iniciação
de Muidinga se dá em etapas, nas quais ele tanto vai sendo ensinado, por
Tuahir, quanto vai ensinando. Aos poucos Muidinga vai mesclando a sua cultura
que tem com a de Tuahir.
Observe-se que Tuahir não sabia ler nem escrever, enquanto
que o garoto sabia. Há uma referência muito explícita a cultura tradicional e a
nova imposição da cultura letrada. No entanto, em Terra Sonâmbula (1993) não há
uma sobreposição da segunda sobre a primeira, pois se bem observado se verá
que, apesar de o letramento estar ligado a Muidinga, este dá continuidade a
tradição da oralidade quando conta as estórias dos cadernos de Kindzu a Tuahir.
Esse contar é feito ritualisticamente à beira da fogueira, como nas comunidades
arcaicas.
Assim, há um reconhecimento da necessidade do novo andar de
mãos dadas com o velho; o passado com o presente.
Essa integração do velho ao novo se observa também no
capítulo em que é narrada a história de Siqueleto, um ancião que ficara só numa
das aldeias abandonadas. Tuahir e Muidinga o encontram porque caem numa
armadilha e são salvos por ele. Siqueleto fala a língua local e Muidinga não
entende, Tuahir serve de intérprete. Assim, observa-se aqui a dependência do
novo ao velho. No final, Siqueleto pede que Muidinga escreva seu nome numa
árvore, mostrando agora a dependência do velho ao novo. Logo, esses
acontecimentos corroboram para reafirmar o que foi dito: o novo anda de mãos
dadas com o velho. Em Terra Sonâmbula (1993), mostra-se que o conhecimento
ancestral é necessário para que se possa construir um novo paradigma.
Durante a narrativa, Muidinga e Tuahir viajam pela estrada
e encontram um local de parada, um ônibus queimado. Decidem permanecer no
ônibus, que é um símbolo da modernidade, do deslocamento; um transporte coletivo,
que se encontra sem movimento, contrariando a sua representação para o mundo
moderno: “o meio de transporte representa a possibilidade, para o homem, de uma
locomoção rápida (que designa o esforço de compensação, o anseio de ganhar
espaço perdendo menos tempo, caracterizando assim, que na narrativa o que
importa é o tempo transcorrido e não o espaço percorrido.
No momento em que chegam ao local onde está o machimbombo,
como é chamado o ônibus na narrativa, Muidinga encontra os cadernos de Kindzu.
Nestes cadernos, temos uma viagem contada em suas minúcias, a qual Muidinga lê
para Tuahir. Segundo IANNI (1990, p.3), “Mesmo os que permanecem, que jamais
saem do seu lugar, viajam imaginariamente ouvindo estórias, lendo narrativas, vendo
coisas, gentes e signos do outro mundo.
Os dois personagens, conforme o que diz Seixo, estabelecem
a renovação da viagem na paragem, pois sua viagem pelos cadernos de Kindzu cria
um novo vínculo com o real, transmudando-o de tal forma, que Muidinga vê a
paisagem ao redor do ônibus se modificando: “De fato, a única coisa que
acontece é a consecutiva mudança da paisagem. Mas só Muidinga vê essas
mudanças. Tuahir diz que são miragens, frutos do desejo de seu companheiro”.
(COUTO, 1993, p. 77)
Desejo de mudança, esperança de vida, era isso que Muidinga
buscava nos cadernos de Kindzu. Nestes cadernos, o protagonista se acha também
numa viagem em busca de transformação. Kindzu quer ser um naparama, um
guerreiro mágico, nos cadernos apresenta seu pai, o velho Taímo, que tinha
sonhos premonitórios e fantásticos. O velho Taímo morre após a independência de
Moçambique. Kindzu, assim como o pai, também tem sonhos que se misturam à
realidade. Sonhos que são premonitórios. Ter sonhos, aqui, significa como ter
ainda esperança. O sonho está ligado à utopia, ao desejo de mudar. Isso se
configura logo nas primeiras páginas de Terra Sonâmbula (1993), pelas epígrafes
que abrem o livro.
Se dizia daquela terra que era sonâmbula. Porque enquanto
os homens dormiam, a terra se movia espaços afora. Quando despertavam, os
habitantes olhavam o novo rosto da paisagem e sabiam que, naquela noite, eles
tinham sido visitados pela fantasia do sonho.
Crença dos habitantes de Matimati.
O que faz andar a
estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para
isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro. Fala de
Tuahir (COUTO, 1993, p. 6)
As duas epígrafes são comprovadas logo em seguida pela
abertura do primeiro capítulo que se intitula “A estrada morta” e que na
primeira linha se lê: “Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada.” (COUTO,
1993, p. 9). Dessa forma, comprova-se ser o sonho o elemento que faz seguir
adiante, nele reside a esperança. E a guerra, que mata os sonhos, traz consigo
a desesperança e o sentimento de desencanto. Numa terra assolada por esse conflito,
seus habitantes já perderam a esperança na vida, por isso deixaram de sonhar.
Esse mundo dos sonhos é buscado na narrativa, pois, através da fantasia,
Muidinga cria e recria o universo de Kindzu. Vive intensamente cada aventura
narrada nos cadernos, a ponto de misturar a realidade e a fantasia; o seu mundo
e o de Kindzu. Isso é bastante evidente, no momento em que Muidinga propõe a
Tuahir brincarem de Kindzu e seu pai: Tuahir faria o papel do velho Taímo, mas
a brincadeira chega ao ponto de se confundir com o real.
E Muidinga se atrapalha em totais
confusões. É como se qualquer coisa, lá fundo de seu peito, se estivesse
rasgando. E se apercebe que, em seu rosto, desliza o frio das lágrimas. Depois,
sente a mão de seu pai lhe afagando a cabeça. Olha o seu rosto e vê que,
afinal, seus olhos eram sábios. Foi como se, de repente, toda a bondade dele
ficasse visível, redonda. (COUTO, 1993, p. 188)
Logo, Kindzu é Muidinga e
vice-versa, através do relato contado, Kindzu reencontra o pai e com ele se
reconcilia, e Muidinga encontra em Tuahir o pai que procurava. A cada momento
as narrativas de Kindzu e Muidinga vão se tocando e se entrelaçando. Sente-se
esse entrelaçamento a partir do momento em que surge no relato a personagem
Farida. Ela aparece nos cadernos de Kindzu, conta a sua história e diz que está
a procura de seu filho Gaspar. Kindzu se apaixona por Farida. Levada pelos
acontecimentos, Farida se isola em um barco que se encontra encalhado,
abandonado, como se fosse um barco fantasma. Nesse navio, os dois se encontram
e relatam seus sonhos um para o outro. Esse navio pode simbolizar os sonhos
impossíveis, uma vez que se encontra encalhado e abandonado como um navio
fantasma: “O navio fantasma simboliza os sonhos, de inspiração nobre, mas
irrealizáveis, do ideal impossível. ” (CHEVALIER, 1999, p. 632). Além disso, “a
metáfora do barco à deriva, símbolo da morte, representa o sentimento de der
(rota) que impregna o modernismo e se acirra no pós-modernismo – a modernidade
lato sensu”. (LOBO, 1988, p.)
Farida pede a Kindzu que
encontre seu filho Gaspar, e ele parte novamente para o continente em busca do
filho de Farida. Começa então uma outra viagem, agora de resgate. Interessante
observar que em ambas as viagens, tanto de Muidinga quanto de Kindzu, há uma
vontade de construir uma identidade. Muidinga para isso quer encontrar seus
pais, Kindzu quer se tornar um naparama, um guerreiro que poderia lutar por seu
povo. Ambos personagens acabam voltando a lugares já percorridos, no entanto,
nunca os veem com o mesmo olhar. Sempre há uma mudança, não no lugar e sim no
observador, no viajante. Segundo IANNI (1990, p.19) o viajante “tanto se perde
como se encontra, ao mesmo tempo que se reafirma e modifica. No curso da viagem
há sempre alguma transfiguração, de tal modo que aquele que parte não é nunca o
mesmo que regressa.
Tanto Muidinga, quanto Kindzu
vão se transformando durante suas viagens e modificando a maneira como percebem
as coisas. Tudo vai se tornando diferente ao olhar de quem, de alguma forma,
sofreu uma transformação, uma influência no contato com o outro “A viagem pode
ser uma longa faina destinada a desenvolver o eu. [...] um eu que se move,
podendo reiterar-se e modificar-se, até mesmo desenvolvendo a sua
autoconsciência; ou aprimorando a sua astúcia. ” (IANNI, 1990, p. 14). Nada do
que foi visto ontem será olhado da mesma forma hoje, porque já não se é mais a
mesma pessoa.
Ao avistar a praia de
Matimati, comprovei como são nossos olhos que fazem o belo. Meu estado de
paixão puxava um novo lustro àquela terra em ruínas. Aquelas visões, dias
antes, já tinham estado em meus olhos. Porém, agora tudo me parecia mais cheio
de cores, em assembleia de belezas. (COUTO, 1993, p. 127)
Vidas que se modificam no
contato com o outro. A construção da identidade como parte da viagem. Isso é o
que se percebe nas páginas de Terra Sonâmbula (1993). Personagens que transitam
do sonho para o pesadelo da realidade, que choca e paralisa. Percepções que vão
se modificando, à medida que a narrativa avança. O olhar já não é mais o mesmo
porque, no caminho, algo foi modificado, não fora, mas dentro do indivíduo que
caminha. É o viajante que se modifica e não a paisagem ou o outro.
Nessa modificação do ser,
percebe-se que a tradição é vista como algo necessário para que haja uma
perfeita harmonia entre o indivíduo e o meio em que vive. É necessário que se
conheça o passado para que se possa interferir no presente. Será através da
aliança entre o passado e o presente que o indivíduo poderá construir o seu
futuro, sem renegar suas tradições, sua cultura e a sabedoria que foi
armazenada em cada pequena partícula da tradição de seu povo. Hoje, devido a
globalização, a tendência que se observa é a massificação da cultura.
Globalizar, criar um mercado comum, com consumidores que sejam fáceis de serem
manipulados pela mídia. Ao mesmo tempo, esse mecanismo, que procura
uniformizar, cria separações abissais entre os indivíduos, classificando-os em
participantes ativos dessa sociedade globalizada ou marginalizados. Estar à
margem, no sentido de não ser um consumidor em potencial, não poder fazer parte
da grande ciranda de frustrações que o mercado globalizado procura vender: “A
sedução do mercado é, simultaneamente, a grande igualadora e a grande
divisora.” (BAUMAN, 1998, p. 55). Afinal, o que se vende não são sonhos, mas
frustrações.
Nesse sentido, a tradição vem
na contramão, mostrando ao indivíduo que a cultura local é primordial nesse
mundo globalizado. Preservar as tradições e delas tirar proveito para seu
crescimento como indivíduo e, consequentemente, como cidadão participante de
uma nação, é o que se percebe nas entrelinhas de Terra Sonâmbula (1993). Isso
não significa viver no passado, mas conseguir unir as duas pontas que são
presente e passado para através delas construir um futuro concreto, real. Logo,
Tuahir e Muidinga aparecem aqui como partes de um mesmo círculo, são
imprescindíveis um ao outro “O ancião liga o novo ao velho, estabelecendo as
pontes necessárias para que a ordem se mantenha e os destinos se cumpram. ” (PADILHA,
1995, p. 21). É o passado dando as mãos ao futuro. Muidinga representa a
inteligência, a esperteza, aquele que detém o conhecimento do novo, vínculo
estabelecido com a sociedade moderna do homem branco e capitalista. Tuahir é a
continuidade da tradição, representa a sabedoria acumulada através daquela.
Nesse ponto, fica cabal a
importância da oralidade nessa viagem. É ela, a oralidade, o meio pelo qual se
realiza a viagem. É através da voz de Muidinga que se dá a história de Kindzu.
Em cada linha do romance, percebe-se que o contar é importante, conserva-se a
tradição não só no conteúdo, mas também na forma, na estrutura da narrativa.
Adentra-se na história de Kindzu em capítulos separados da realidade de
Muidinga, narrativas encaixadas que se mesclam através da voz deste. A
tradição, portanto, perpassa todo o romance, até mesmo na sua construção.
Assim, percebe-se aqui a oralidade como símbolo de preservação de uma tradição,
da mesma forma que Laura Cavalcante Padilha (1995) aponta nos missossos de
Angola.
A viagem é outro elemento que
está sempre presente na narrativa, tanto na iniciação de Muidinga como nos
cadernos de Kindzu. São várias viagens. Em seus cadernos, Kindzu empreende uma
viagem iniciativa, assim como Muidinga ao lê-los. E este, juntamente com
Tuahir, viaja nos escritos dos cadernos, e nos ensinamentos de Tuahir, a fim de
completar a sua viagem. No final, ainda se tem a viagem de Tuahir para a morte,
que é caracterizada de uma forma ritualística, pois Muidinga o coloca em uma
canoa para que ele seja levado pelo mar. “A barca é o símbolo da viagem, de uma
travessia realizada seja pelos vivos, seja pelos mortos. ” (CHEVALIER, 1999, p.
121). Poeticamente construída, essa passagem de Terra Sonâmbula (1993) consegue
transformar a morte em um momento mágico e sublime ao som do mar e das
gaivotas. Liberado desse mundo real, Tuahir agora é embalado pela fantasia que
se espalha pelas águas de um mar de sonhos.
“ As ondas vão subindo a duna
e rodeiam a canoa. A voz do miúdo quase não se escuta, abafada pelo requebrar
das vagas. Tuahir está deitado, olhando a água chegar. Agora, já o barquinho
balouça. Aos poucos se vai tornando leve como mulher ao sabor de carícia e se
solta do colo da terra, já livre, navegável. Começa então a viagem de tuahir para
um mar cheio de infinitas fantasias. Nas ondas estão escritas mil estórias,
dessas de embalar as crianças do inteiro mundo. “(COUTO, 1993, p. 235)
Atente-se que não é o mundo
inteiro, mas o “inteiro mundo”. A colocação desse adjetivo, antecedendo ao substantivo,
tem nessa narrativa uma sutil diferença, que traz um importante significado ao
contexto. É um mundo que se faz inteiro ao aliar a fantasia, o sonho, as
estórias contadas, a tradição, à realidade circundante do presente mundo
globalizado. Ao fazer essa junção, tem-se um mundo completo e não fragmentado,
um “inteiro mundo”. É nas crianças, que conseguem mesclar a fantasia e a
realidade, que reside a esperança desse mundo que se fará inteiro. Nelas é que
estão os sonhos de esperança para essa terra escalavrada pela guerra. Então, a
viagem empreendida pelos personagens de Terra Sonâmbula (1993) ultrapassa o
romance e se configura como uma viagem coletiva. Participa dessa viagem cada
leitor que se detenha em suas paragens, na busca dessa individualidade, que se
transforma na coletividade da nação.
Esse individual que se
transforma em coletivo, dentro do romance, parte de um princípio diferente do
individualismo globalizante. Neste, o indivíduo se faz único pela
competitividade, pela busca da superioridade egocêntrica. Já na viagem que se
configura em Terra Sonâmbula, o indivíduo se faz único porque percebe de
maneira diferente o mundo ao seu redor, através da interiorização dos costumes
de seu povo e, ao mesmo tempo, ao fazer essa interiorização se percebe
integrado a essa comunidade, a essa nação: “A viagem é sempre realizada por uma
personagem em busca de uma situação de melhoramento para si própria ou para o
grupo” (PADILHA, 1995, p. 38).
Estrutura que remete ao conteúdo, as viagens
empreendidas por Kindzu e Muidinga correm paralelas para no final se
entrelaçarem. Muidinga percebe-se partícipe da narrativa de Kindzu e este toma
parte da história de Muidinga. Descobrem-se unidos por um ponto comum: Farida.
Muidinga, na verdade, é o filho de Farida, Gaspar, por quem Kindzu procurava.
Na narrativa que se encontra nos cadernos, Muidinga lê a visão premonitória de
Kindzu, no momento de sua morte, na qual ele, Kindzu, se vê frente a Gaspar e
grita seu nome. Nesse momento Muidinga adentra nos cadernos, lê sobre si mesmo
na narrativa que conta. A história de Kindzu acaba por influenciar a vida de
Muidinga. É neste que foram semeadas as esperanças de continuidade de uma
tradição que se vê dilacerada. Em Muidinga se percebe a semente lançada na
terra. Seus sentimentos fazem agora parte dessa terra porque se sente unido a
ela, uma vez que vivenciou, através dos relatos de Kindzu, o encontro com as
tradições, com os mitos dessa terra de Moçambique. Percebe-se, então, que
Muidinga é a semente plantada nas “páginas de terra” de Kindzu.
“Mais adiante segue um miúdo
com passo lento. Nas suas mãos estão papéis que me parecem familiares. Me
aproximo e, com sobressalto, confirmo: são os meus cadernos. Então, com o peito
sufocado, chamo: Gaspar! E o menino estremece como se nascesse por uma segunda
vez. De sua mão tombam os cadernos. Movidas por um vento que nascia não do ar,
mas do próprio chão, as folhas se espalham pela estrada. Então, as letras, uma
por uma, se vão convertendo em grãos de areia e, aos poucos, todos meus escritos
se vão transformando em páginas de terra.” (COUTO, 1993, p. 245)
No final dessa viagem, há o
encontro do velho com o novo. A tradição que é semeada no futuro. Nasce junto
com Muidinga a esperança de um tempo. Um tempo repleto de sonhos, de fantasias,
no qual a estrada esteja viva e dê passagem aos sonhadores, viajantes da terra.
Muidinga nasce de novo ao descobrir a sua identidade; e Moçambique precisa
reafirmar sua identidade descobrindo novamente sua cultura, suas tradições, não
deixando morrer o velho em detrimento do novo: ao contrário, fazendo com que
toda uma sabedoria do passado seja terreno fértil para receber as sementes do
futuro. Nas páginas de Terra Sonâmbula (1993), Mia Couto semeia a esperança de
um futuro, no qual Moçambique, seja a terra dos sonhos de cada moçambicano:
unidos e fortificados pela tradição, ligados à cultura global. Na fala de
Tuahir residia a existência de um conhecimento ancestral, assim como nos
cadernos de Kindzu que tem suas histórias reveladas através da fala de Muidinga.
Assim, a oralidade representa, na narrativa, o elo de ligação entre a tradição
e o moderno, pois Muidinga é partícipe da cultura letrada, mas também da
cultura que se perpetua pela oralidade. Então, é em Muidinga, que reside a
esperança de um futuro de paz e sonhos para essa terra. A criança que une o
passado e o presente, através do que lhe contam seus antepassados e através da
literatura escrita. Assim como o sonho faz viver a estrada é o contar histórias
que cria os sonhos. Mia Couto conta uma história em que o personagem sonha, e é
sonhado pelo leitor, pelo ouvinte. Tuahir e Muidinga são ao mesmo tempo
narrador e ouvinte. Muidinga é também leitor, assim como o leitor de Mia Couto
será leitor, ouvinte e sonhador dessa narrativa. São sonhos de esperança
alimentados por cada leitor, cada sonhador que se percebe como um ouvinte das
histórias contadas pelas personagens, sente-se então a força da oralidade que
perpassa a narrativa. É dessa forma, que se percebe, na viagem por essa Terra
Sonâmbula, os sonhos de esperança que nascem dessas “páginas de terra”.
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